Por vezes, embrenha-se de tal forma na sua mente, que se esquece de olhar, até mesmo dos olhos.

A cor do assunto

Tratamos a Humanidade como um todo que evoluiu. Sendo assim, não podemos crer que só vivemos uma vez. Se assim fosse, a Humanidade seria estagnada: uns nasciam, aprendiam alguma coisa e desapareciam seriam "comidos pela terra" como se diz, depois outros viriam e aconteceria o mesmo. Não sendo assim possível evolução. Nós acreditamos no "além" e nem sabemos. Consideramo-nos imortais mas nem damos conta.

Tão simples

De princípio, a senhora tinha um ar alegre. Trabalhava sem qualquer lamento. “São as beatas”, a varrer. Dizia isto não como quem reclama, dizia isto como sendo uma informação importante. Ela própria tinha cara de fumadora. Tinha tanto cara de fumadora! Mas eu era capaz de jurar que ela não fuma.
Ao partir, vi, mesmo à minha frente, uma mulher a fumar. Juntou-se a ela outra, completamente diferente. E juntou-se outra, ainda mais distinta. E criou-se um espaço ali de cumplicidade de fumadores. A primeira parecia tão superficial que impressionava. A outra era estranha, não deixava transparecer quase nada. A terceira sorria imenso, ria até. E acho que foi só neste momento que eu entendi que o fumo é como beber água. Mais tarde, na enésima paragem, um grupo de crianças bem autónomas, nos aguardava, tão coeso. E entraram dando alegria àquele caixote. Sorri imenso, veio-me uma alegria cá para fora. E na paragem seguinte, mais crianças! Ainda mais. Acho que até me ri, aquele rir delicioso de quando estamos sozinhos mas não dá para aguentar.
Bem mais tarde, a criança estava emburrada, não queria estar ali, o que é perfeitamente natural. E era forçada, enquanto a mãe olhava para o ecrã a tentar perceber quantas calorias gastou. O filho era um rebelde. O outro olhava maroto. Parecia imitar aqueles falhados que tentam ser galãs com os truques dos olhos ou do cabelo. Oh, e o rir sozinho foi descontrolado, inevitável.

Quero contar uma história

Ontem vi uma rapariga com um olhar impenetrável. Acho que usava saltos. Mas notava-se o quanto tremia. Ainda se notava, e ainda bem.
Nós temos medo. Depois há a personagem segura, as roupas intimidantes. Tudo porque temos medo. Ela tremia porque ainda não tinha personagem, ainda estava em construção. E ainda bem. O tremelicar simboliza a consciência, o anjinho que nos sussurra ao ouvido do coração.
A Humanidade enquanto bebé precisava de uma mãe bem forte. Chamava-se Natureza. A menina sempre foi um bebé chorão e chato, mas tão bonita que a mãe não lhe resistia. E foi lhe dando tudo o que a Humanidade precisava. A criança foi crescendo bem espontânea. Ai, a miúda era muito traquinas! Mas era tudo por inconsciência. Ela sabia aproveitar o que a mãezinha lhe dava. A curiosidade levava-a longe. A Humanidade era muito espertinha, sempre descobrindo coisas. Por vezes eram descobertas tão estrondosas que nem sabia o que fazer com elas, desorientava-se um pouco. A mãe tentava ajudar. Mas a típica rebeldia da adolescência também estava presente no carácter da Humanidade. Então, não aceitava ajuda e preferia ser independente, o que a fez sofrer muito. No entanto, vinham muitas borboletas brancas pousar nela e ela sorria. Era uma foliona! Tudo era motivo para festa. A alegria da Humanidade era uma constante. E ela foi crescendo e, inteligente que era, foi entendendo o que as borboletas queriam dizer. Ela esquecia-se das consequências. A Humanidade, apesar de ser uma miúda de iniciativa, era muito inexperiente e não prestava atenção ao que a mãe dizia, tão subtilmente. Tornava-se arrogante, até. E ia-se tornando assim, pela confiança que a inteligência lhe dava.
A Humanidade era contraditória. Tinha aspextos que se misturavam de uma forma pouco comum. E isso era bom. Esses aspectos entrelaçavam-se cada vez mais. Era como se, inconscientemente, ela se quisesse tornar mais homogénea. E, assim, meio arrogante meio eclética, foi ficando adulta. A racionalidade começava a ganhar destaque nela. Ela era agora uma mulher disposta a corrigir o que não gostava em si. Havia o lado mais natural, mais puro; mas também o seu lado mais comodista, mais mal-habituado, mais rico. E ia tentando mudar, ainda vaidosa, ainda relutante, daí o seu andar transparecer o tremelicar interior. Ela sentia-se um pouco envergonhada e, por isso, gostava de se mascarar, para parecer segura e óptima. Era orgulhosa. E esse seu lado era a sua protecção. A sua mãe desistira já da subtileza e era agora clara. A filha via a mãe, entendia o que ela dizia, percebia o que ela mostrava. Mas a Humanidade continuava matreira e tinha lá os seus objectivos. Havia dias em que se esquecia do que a mãe mostrava e voltava a não fazer da melhor maneira. Havia outros em que a vontade de mudar era tanta que se esforçava realmente. E o seu tempo de adulta foi sendo vivido, ora consciente ora tola. E dentro da Humanidade, havia este braço de ferro entre o que de mais contraditório pode existir. Está na hora de ceder, de mimar as borboletas.

CRIMES DE GUERRA?

Ritmos





Não há grande comércio por aqui. O dia está cinzento. E nem por isso isto está feio. Vejo as pessoas aqui a passear, um pouco naquela de olhar só. E agora está aqui uma criança super feliz a correr e a mãe corre com ela, naquela cumplicidade que completa qualquer mãe. Distinguem-se vários passos, vários ritmos. E isso pode dizer tanto.

Há um comum daqueles que passeiam, é daqueles que têm um objectivo mas apetece tanto desfrutar que não há pressa. Há outro daqueles que se esforçam tão nitidamente que apetece que parem. Há o ritmo dos descomprometidos. Há o ritmo de quem queria tanto estar parado mas não está porque está outra pessoa. Há ritmo da descoberta, há o de falar ao telefone que é tão pouco ritmo. Há o ritmo dos segways, tão experimental. Há o ritmo dos que fotografam, tão semelhante ao dos que falam ao telemóvel. Há o ritmo de quem ama.

Há o ritmo paradíssimo de duas pessoas ali, super curiosas, a tentar descobrir alguma coisa, que embrenhados. Há o ritmo do entusiasmo de criança, de insegurança que não é o da descoberta, é mais imaturo. E só há mais um ritmo que é o dos que comunicam sentindo, pacientemente. Os pombos parecem querer imitar estes ritmos. Mas, coitados, depois perdem-se com o milho.

O chão parece gritar por socorro, sente-se cansado como aquela música do Islão que parece já ter vivido eternidades de enfado.



As pessoas de segway divertem-se, sorriem tão acriançadas, tão bonitas.

Enfurece-se de forma aterradora, pouco imaginável. O corpo duro, a mente transtornada, o passo rápido. E era o quê? O telefone, o telefone! Que ânsia angustiada por atender o telefone. Uma palavra e a expressão torna-se monstruosa, torna-se repulsiva. Nem dá para olhar de tão asquerosa. A voz fica grave e emudece-se de tão furiosa. Lembra aqueles índios que arrancavam o coração de alguém para oferecer aos deuses.
E nesta sociedade, tantas vezes a raiva vem e destrói. E, por vezes, como justificação para o comportamento selvagem, nomeamos a justiça. Coitada da justiça.

Should I stay or should I go,
Should I stay or should I go now...

Foi no ano em que nasci. E não há quem leia que não comece a cantar. Ai, estes Clash...

Do coração


Do topo do monte vejo tudo. Do topo do monte o vento bate mais forte, sinto o sol de forma mais intensa. A cidade está toda ao meu alcance, chega levantar a cabeça. É tão acolhedora esta sensação de ver tudinho. Sinto que me dão o branco de bandeja , e ele ainda toca baixo.

Há certos focos de luz ofuscante, mas são só uns focos e eu tenho toda a cidade em volta, bem visível, bem real, bem fatimense. Vejo o santuário ali ao fundo. Daqui nem parece importante. Os aerogeradores! Confortam tanto: sabemos a evolução, sabemos a mudança real. Há muito verde, há pureza suave e fluída. E gosto disto. Do topo do monte vejo e sinto a minha cidade. Todos os dias da minha casa também vejo o monte no qual agora me deito. E acho-o curioso, acho pertinho mas tão distante porque nunca venho aqui ao cabeço. Eu vejo-o e ele vê-me. E agora, dele, vejo-me na cidade. E do topo do monte acaricio as casinhas e o verde. Do topo do monte a oliveira também vê tudo, mas não sabe o que é. No topo do monte há coisas incompreensíveis. Gosto mais do que vejo do topo do monte do que dele em si.

Daqui também ouço o sino, tão aliciante, a querer que eu vá com ele ao meu passado de criança. Ai, que conforto.

O topo do monte também é o coração. Vejo tudo do topo do monte, vejo tudinho.